Épica e engajamento na ópera Café, de Mário de Andrade
Data
2019-11-07
Tipo
Tese de doutorado
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Resumo
The following text is an interpretation of the opera Café [coffee], which was conceived by the Brazilian modernist writer Mário de Andrade in partnership with the composer Francisco Mignone. Considering the fact that Mignone didn’t compose the musical part of the opera, my research was based on the writer’s texts and manuscripts (libretto, “Melodramatic conception”, directions and so on). In three acts and five tableaux, Café depicts the workers’ suffering in different locations (a coffee exportation harbor warehouse, a coffee plantation, a parliamentary session, a train station whose railways connect the farms’ surroundings to the big city, and a slum), in the aftermath of the devaluation of the international price of coffee, as a result of the 1929 crisis. The opera sets itself apart from realist and localist styles, and ends with a socialist revolution in an apotheotic mood. My approach on Café is based mainly on two concepts: epic and commitment. The first one, which was not coined by the author himself, is mostly based on Peter Szondi and Anatol Rosenfeld’s works, though it follows a specific outspread throughout the analysis. The second one is among the most relevant concepts in Mário de Andrade’s aesthetic thinking, therefore it is framed according to the writer’s own texts, be it artistic or not. This thesis starts considering the author’s directions concerning scenographic features, making a distinction between dramatic and non-dramatic resources as well as, among the latter, between lyricism and prophetic symbolism. Afterwards, it unfolds an analysis of the opera’s epic structure, 1) which balances the opinion that claims its discontinuous, hesitating or contradictory nature – as composed by two texts of a different nature – and pursues some continuity and an epic focus, both based on the text but in connection to the “Melodramatic conception”; and 2) whose core is the sacrificial principle, or rather, the death and resurrection cycle. However, as the epic narrative assimilates the non-narratable – that is to say, the miracle – an analysis restricted to it reveals itself to be insufficient. Thus, the text ends dealing with the concept of commitment, which takes the form of an equation – that can be solved in different ways – among three factors: the subject, the form and the audience. The matter of commitment emerges insofar as some artistic resources are not managed aiming at a narrative role, but mostly seeking specific effects on the audience, whether demanding their reflection or stimulating certain moral behaviors from them. In the last case, the subject – the main social objective mediation link between the artist and the popular audience – decreases in relevance.
O texto que se segue nas próximas páginas é uma interpretação da ópera Café, concebida por Mário de Andrade como uma parceria sua com o compositor Francisco Mignone. Tendo em vista o fato de que Mignone não chegou a musicar o libreto, a pesquisa da qual esta tese nasceu tomou por base os textos e manuscritos do próprio autor (libreto, “Concepção melodramática”, marcações e demais indicações). Composta de três atos e cinco quadros, Café retrata a miséria dos trabalhadores depois da queda do preço internacional do café, decorrente da Crise de 1929, a partir de diferentes enfoques: no armazém de um porto de exportação de café, em uma fazenda cafeeira, em uma sessão parlamentar, em uma estação de trem que leva das proximidades da fazenda até a grande cidade e em um cortiço urbano. Afastando-se do realismo e do localismo, a ópera termina com uma revolução socialista em tom apoteótico. Café é enfocada aqui fundamentalmente por meio de dois conceitos: épica e engajamento. O primeiro deles, ausente no léxico do autor, é mobilizado sobretudo com base em Peter Szondi e Anatol Rosenfeld, embora apresente desdobramentos específicos ao longo da análise. O segundo constitui um dos conceitos caros à reflexão estética de Mário de Andrade, razão pela qual é articulado com base nos textos (artísticos ou não) do próprio escritor. Esta tese se inicia com o exame das indicações de Mário de Andrade a respeito dos aspectos cenográficos, distinguindo certos procedimentos afins ao espírito do drama daqueles que se distanciam dele e diferenciando, entre estes, duas linhas de força: lirismo e simbolismo profético. Em seguida, desenvolve-se uma análise da estrutura épica da ópera 1) que pondera a visão de que ela seria descontínua, hesitante ou contraditória – pois concebida por meio de dois textos de naturezas diferentes –, e busca identificar uma continuidade e um foco épico que, calcados no libreto, leve em conta a articulação deste com as indicações cênicas, coreográficas e musicais indicadas na “Concepção melodramática”; e 2) cuja matriz é o princípio sacrificial ou, mais especificamente, o ciclo de morte e ressurreição. Porém, dado que a narrativa épica absorve o inenarrável – isto é, o milagre –, uma análise limitada à estrutura épica é insuficiente. Assim, expõe-se, finalmente, a questão do engajamento, que se configura como uma equação – passível de ser solucionada de diferentes maneiras – entre três elementos: o assunto, a forma e o espectador. Esse problema do engajamento se coloca na medida em que alguns procedimentos artísticos são orientados não para a função narrativa, mas sobretudo a certos modos de intervenção no público, seja convocando-o à reflexão, seja incitando-o a comportamentos morais. Neste último caso, a importância do assunto – elo fundamental de mediação social objetiva entre o artista e o público de extração popular – tende a definhar.
O texto que se segue nas próximas páginas é uma interpretação da ópera Café, concebida por Mário de Andrade como uma parceria sua com o compositor Francisco Mignone. Tendo em vista o fato de que Mignone não chegou a musicar o libreto, a pesquisa da qual esta tese nasceu tomou por base os textos e manuscritos do próprio autor (libreto, “Concepção melodramática”, marcações e demais indicações). Composta de três atos e cinco quadros, Café retrata a miséria dos trabalhadores depois da queda do preço internacional do café, decorrente da Crise de 1929, a partir de diferentes enfoques: no armazém de um porto de exportação de café, em uma fazenda cafeeira, em uma sessão parlamentar, em uma estação de trem que leva das proximidades da fazenda até a grande cidade e em um cortiço urbano. Afastando-se do realismo e do localismo, a ópera termina com uma revolução socialista em tom apoteótico. Café é enfocada aqui fundamentalmente por meio de dois conceitos: épica e engajamento. O primeiro deles, ausente no léxico do autor, é mobilizado sobretudo com base em Peter Szondi e Anatol Rosenfeld, embora apresente desdobramentos específicos ao longo da análise. O segundo constitui um dos conceitos caros à reflexão estética de Mário de Andrade, razão pela qual é articulado com base nos textos (artísticos ou não) do próprio escritor. Esta tese se inicia com o exame das indicações de Mário de Andrade a respeito dos aspectos cenográficos, distinguindo certos procedimentos afins ao espírito do drama daqueles que se distanciam dele e diferenciando, entre estes, duas linhas de força: lirismo e simbolismo profético. Em seguida, desenvolve-se uma análise da estrutura épica da ópera 1) que pondera a visão de que ela seria descontínua, hesitante ou contraditória – pois concebida por meio de dois textos de naturezas diferentes –, e busca identificar uma continuidade e um foco épico que, calcados no libreto, leve em conta a articulação deste com as indicações cênicas, coreográficas e musicais indicadas na “Concepção melodramática”; e 2) cuja matriz é o princípio sacrificial ou, mais especificamente, o ciclo de morte e ressurreição. Porém, dado que a narrativa épica absorve o inenarrável – isto é, o milagre –, uma análise limitada à estrutura épica é insuficiente. Assim, expõe-se, finalmente, a questão do engajamento, que se configura como uma equação – passível de ser solucionada de diferentes maneiras – entre três elementos: o assunto, a forma e o espectador. Esse problema do engajamento se coloca na medida em que alguns procedimentos artísticos são orientados não para a função narrativa, mas sobretudo a certos modos de intervenção no público, seja convocando-o à reflexão, seja incitando-o a comportamentos morais. Neste último caso, a importância do assunto – elo fundamental de mediação social objetiva entre o artista e o público de extração popular – tende a definhar.